sábado, 7 de agosto de 2010

É coisa nossa


Rubens Alves da Silva mostra a importância do congado na construção da identidade do negro em Minas Gerais

Ângela Faria

Tradição em Minas Gerais, o congado despertou relativamente pouco interesse nos meios acadêmicos e científicos. Consciente desse fato, o belo-horizontino Rubens Alves da Silva, doutor em antropologia social e pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP), se dedicou à pesquisa dos saberes congadeiros. O trabalho deu origem ao livro Negros católicos ou catolicismo negro? (Editora Nandyala), que será lançado hoje, às 10h, na Livraria Quixote.

Rubens acredita que o congado é referencial expressivo da construção identitária positiva do negro em Minas Gerais, “reafirmada com sutileza no jogo simbólico das coroas e coroados e no repique de caixas e toques dos tambores”. Frequentemente, ressalta-se a importância de ritos religiosos e práticas culturais afro-baianas ou afro-cariocas para a autoestima do negro brasileiro. Minas Gerais e seu congado também contribuem significativamente para esse processo.

O pesquisador observa que as formas de construção social da identidade negra no Brasil variam de acordo com a situação específica e a particularidade contextual em que essa consciência é reivindicada ou afirmada. “Talvez, seja até mais correto falar de identidades negras, no plural, ao considerar que as referências culturais às quais os indivíduos e grupos afrodescendentes no Brasil lançam mão para exibir as suas diferenças tendem a variar em conformidade com valores, estilos de vida, diferentes concepções e visões de mundo. Isso implica também, entre outras variáveis, na própria questão da diversidade regional das formas de expressão e práticas culturais afro-brasileiras”, pondera.

Rubens acompanhou grupos de congado em Belo Horizonte e em Dores do Indaiá, no Centro-Oeste do estado. Assistiu a ensaios de ternos, participou de missas e novenas, frequentou festas com jovens congadeiros, não se furtou a dividir mesa de boteco com participantes do ritual. Não perdia festa de Nossa Senhora do Rosário, desfiles ou cortejos. Das 7h às 21h, o pesquisador cansou de “bater ponto” nessas comemorações.

De acordo com ele, o congado mineiro apresenta caráter notadamente sincrético. “Essa manifestação religiosa tem como característica algo que define o próprio catolicismo brasileiro, em sua vertente popular: a capacidade de mesclar, incorporar e ressignificar elementos presentes em outra matriz religiosa – no caso, os cultos afro-brasileiros –, e, nesse caso específico, elementos de universo mais amplo, no qual se inserem os negros em Minas Gerais e suas interpretações do catolicismo ibero-africano em expressões como folia de reis, cavalhada, catopés, etc.”, explica.

O autor de Negros católicos ou catolicismo negro? chama a atenção para a importância das irmandades leigas católicas do Brasil colônia. Protetoras de seus associados, elas constituíram importante espaço para que africanos e seus descendentes mantivessem vivos valores, crenças e práticas religiosas e culturais, como é o caso do congado. Isso se deu sobretudo em relação a associações vinculadas a santos de devoção desses grupos, como Nossa Senhora do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito.

Sincretismo Séculos depois, o pesquisador observou, in loco, a articulação de elementos de religiões afro-brasileiras com as práticas dos congadeiros. Viu a rainha conga atuando como benzendeira, ouviu-a dizendo ser assistida por pretos velhos. Notou as figuras de Iemanjá e do Preto Velho decorando paredes, próximas ao santuário com imagens de São Jorge, São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Acompanhou ritual sagrado conjunto da rainha conga e da mãe de santo para abençoar alimentos a serem distribuídos à criançada no Dia de Cosme e Damião. De um lado, os santos; de outro, a umbanda.

“É no emaranhado dessa trama sincrética e em complexo jogo de ambiguidades e ambivalências que se observa a identidade negra ganhar destaque e se afirmar de maneira singular e diversificada no mundo mágico-religioso do congado mineiro”, escreve Rubens Alves da Silva.

Século 21 Tambores não batem apenas nos dias de festa religiosa, sobretudo de agosto a outubro, durante desfiles dos ternos ou nos cortejos de reis, rainhas e seu séquito pelas ruas de nossas cidades. De alguns anos para cá, a batida congadeira tem encantado multidões de jovens de classe média em Belo Horizonte, que lotam oficinas de percussão, workshops e shows de grupos especializados em ritmos afro-mineiros.

Cantores e compositores como Maurício Tizumba e Titane se destacam nesse cenário, protagonizando momento peculiar da arte feita no estado. O tambor congadeiro, diz Tizumba, é rica fonte para a percussão mineira. “Um tambor de reza que toca para andar, parar, alimentar, subir e descer morro, chover, parar de chover, agradecer, para a vida e para a morte. Não sei se por estar atrás das montanhas e não na beira do mar ou por ser um tambor religioso, mas só sei que até nós mesmos desconhecemos essa nossa tradição, a força da percussão mineira”, declarou ele, recentemente, em entrevista ao Pensar.

Rubens Alves da Silva saúda esse fenômeno, observado desde a década de 1990. “Há um movimento considerável de valorização do congado em Minas Gerais. O trabalho de artistas, o interesse de pesquisadores acadêmicos ou ligados a organizações não governamentais, como é o caso da Associação Cultural Cachuera, por exemplo, contribuem favoravelmente para dar maior visibilidade ao congado, inclusive fora das fronteiras regionais. Isso reforça a legitimação social dessa prática cultural enquanto forma de expressão singular da tradição afro-mineira”, conclui.

Negros católicos ou catolicismo negro? – Um estudo sobre
a construção da identidade negra no congado mineiro
De Rubens Alves da Silva
Editora Nandyala, 191 páginas, R$ 20
Lançamento hoje, das 10h às 14h.
Quixote Livraria e Café,
Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, (31) 3227-3077.
Contato: www.nandyalalivros. com.br e (31) 3281-5894

Fonte: Jornal Estado de Minas, 7/08/10

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